AS CISMAS DO DESTINO III

III
"Homem! por mais que a Idéia desintegres,

Nessas perquisições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,

Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrima hediondas.
Negro e sem fim é esse em que te mergulhas
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene

É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!
Porque, para que a Dor perscrutes, fora

Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!
A universal complexidade é que Ela

Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!
Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!

Das papilas nervosas que há nos tatos
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!
Como o machucamento das insônias

Te estraga, quando toda a estuada Idéia
Dás ao sôfrego estudo da ninféia
E de outras plantas dicotiledôneas!
A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;
As rebeladas cóleras que rugem

No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem;
O orbe feraz que bastos tojos acres

Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira concreta dos massacres;
Os sanguinolentíssimos chicotes

Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;
O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo

Entra, à espera que a mansa vítima o entre,
-Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;
As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;
O trem particular que um corpo arrasta

Sinistramente pela via férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;
A água arbitrária que hiulcos caules grossos

Carrega e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopéias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;
As projeções flamívomas que ofusca,

Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;
O antagonismo de Tifon e Osíris,

O homem grande oprimido o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira meteórica do arco-íris;
Os terremotos que, abalando os solos,

Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;
O instinto de procriar, a ânsia legítima

Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;
As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,

A pesada opressão característica
Dos 10 minutos de um acesso de asma;
E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda

Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
À morte desgraçada dos açougues...
Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho

Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânica da terra!
Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa

Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!
Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,

Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;
Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,

Teu pé mata uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventres geradores!
O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,

Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno

Ao sangue dos mamíferos vorazes!
Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes

A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostras a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!
O Espaço -esta abstração spencereana
Que abrange as relações de coexistência

É só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!
As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham

São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.
Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes
Que essa mão, de esqueléticas falanges,

Dentro dessa água que com a vista abranges,
Também prova o princípio de Arquimedes!
A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,

Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!
Nem terás no trabalho que tiveste

A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!
Quando chegar depois a hora tranqüila,
Tu serás arrastado, na carreira,

Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!
Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...

É a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!
Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!

O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!"