OS DOENTES III

III
Dormia embaixo, com a promíscua véstia
No embotamento crasso dos sentidos,

A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.
Feriam-me o nervo óptico e a retina
Aponevroses e tendões de Aquiles,
Restos repugnantíssimos de bílis,

Vômitos impregnados de ptialina.
Da degenerescência étnica do Ária
Se escapava, entre estrépitos e estouros,
Reboando pelos séculos vindouros
O ruído de uma tosse hereditária.
Oh! desespero das pessoas tísicas,
Adivinhando o frio que há nas lousas,

Maior felicidade é a destas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!
Estas, por mais que os cardos grandes rocem
Seus corpos brutos, dores não recebem;

Estas dos bacalhaus o óleo não bebem,
Estas não cospem sangue, estas não tossem!
Descender dos macacos catarríneos
Cair doente e passar a vida inteira

Com a boca junto de uma escarradeira,
Pintando o chão de coágulos sanguíneos!
Sentir, adstritos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados

Passearem, como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!
Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,

Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!
Querer dizer a angústia de que é pábulo,
E com a respiração já muito fraca

Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último vocábulo!
Não haver terapêutica que arranque
Tanta opressão como se, com efeito,

Lhe houvesse sacudido sobre o peito
A máquina pneumática de Bianchi!
E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer, como um cronômetro gigante,

Marcando a transição emocionante
Do lar materno para a catacumba!
Mas vos não lamenteis, magra mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,

Consagrando vossa última fonética
A uma recitação de misereres.
Antes levardes ainda uma quimera
Para a garganta omnívora das lajes
Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes

Contra a dissolução que vos espera!
Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante a minha concepção vesânica
Há de pagar um dia o último imposto!
Começara a chover. Pelas algentes

Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medula dos Doentes!
Do fundo do meu trágico destino,

Onde a Resignação os braços cruza,
Saía, com o vexame de uma fusa,
A mágoa gaguejada de um cretino.
Aquele ruído obscuro de gagueira

à noite, em sonhos mórbidos, me acorda,
Vinha da vibração bruta da corda
Mais recôndita da alma brasileira!
Aturdia-me a tétrica miragem

De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.
A civilização entrou na taba

Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,

Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!
Como quem analisa uma apostema,
De repente, acordando na desgraça,

Viu toda a podridão de sua raça...
Na tumba de Iracema!...
Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia sobre ele ação funesta

Desde o desbravamento da floresta
À ultrajante invenção do telefone.
E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra,

Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!
A hereditariedade dessa pecha
Seguira seus filhos. Dora em diante

Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda com a flecha!
Veio-lhe então como à fêmea vêm antojos,
Uma desesperada ânsia improfícua

De estrangular aquela gente iníqua
Que progredia sobre os seus despojos!
Mas, diante a xantocróide raça loura,

Jazem, caladas, todas as inúbias,
E agora, sem difíceis nuanças dúbias,

Com uma clarividência aterradora,
Em vez de prisca tribo e indiana tropa

A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada

De uma raça esmagada pela Europa!
Era a hora em que arrastados pelos ventos,

Os fantasmas hamléticos dispersos
Atiram na consciência dos perversos

A sombra dos remorsos famulentos.
As mães sem coração rogavam pragas

Aos filhos bons. E eu, roído pelos medos,
Batia com o pentágono dos dedos

Sobre um fundo hipotético de chagas!
Diabólica dinâmica daninha

Oprimia meu cérebro indefeso
Com a força onerosíssima de um peso

Que eu não sabia mesmo de onde vinha.
Perfurava-me o peito a áspera pua

Do desânimo negro que me prostra,
E quase a todos os momentos mostra
Minha caveira aos bêbedos da rua.
Hereditariedades politípicas

Punham na minha boca putrescível
Interjeições de abracadabra horrível

E os verbos indignados das Filípicas.
Todos os vocativos dos blasfemos,

No horror daquela noite monstruosa,
Maldiziam, com voz estentorosa,

A peçonha inicial de onde nascemos.
Como que havia na ânsia de conforto

De cada ser, ex.: o homem e ofídio,
Uma necessidade de suicídio

Em um desejo incoercível de ser morto!
Naquela angústia absurda e tragicômica

Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho

Que ingeriu 30 gramas de noz-vômica.
E, como um homem doido que se enforca,

Tentava, na terráquea superfície,
Consubstanciar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!
Vinha, às vezes, porém, o anelo instável
De, com o auxílio especial do osso masséter

Mastigando homeomérias neutras de éter
Nutrir-me da matéria imponderável.
Anelava ficar um dia, em suma,

Menor que o anfióxus e inferior à tênia,
Reduzido à plastídula homogênea,

Sem diferenciação de espécie alguma.
Era (nem sei em síntese o que diga)

Um velhíssimo instinto atávico, era
A saudade inconsciente da monera

Que havia sido minha mãe antiga!
Com o horror tradicional da raiva corsa

Minha vontade era, perante a cova,
Arrancar do meu próprio corpo a prova

Da persistência trágica da força.
A pragmática má de humanos usos

Não compreende que a Morte que não dorme
É a absorção do movimento enorme

Na dispersão dos átomos difusos.
Não me incomoda esse último abandono.

Se a carne individual hoje apodrece,
Amanhã, como Cristo, reaparece

Na universalidade do carbono!
A vida vemdo éter que se condensa,

Mas o que mais no Cosmo me entusiasma
É a esfera microscópica do plasma

Fazer a luz do cérebro que pensa.
Eu voltarei, cansado da árdua liça,
À substância inorgânica primeva,

De onde, por epigênese, veio Eva
E a stirpe radiolar chamada Actissa!
Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,

Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!